segunda-feira, maio 14, 2007

A Necessidade do Supérfluo



Rodrigo Constantino

"Pelo necessário, o homem é capaz de matar; pelo supérfluo, é capaz de morrer." (Carlos Lacerda)

Um curso desenvolvido em 1933 pelo pensador espanhol Ortega y Gasset acabou virando livro, sob o título Meditação Sobre a Técnica. Nele, o escritor fala sobre o sentido da vida humana e o papel que a técnica exerce nesse contexto. Para Gasset, "é notório que no homem os instintos estão quase apagados, pois o homem não vive, definitivamente, por seus instintos, mas se governa mediante outras faculdades, como a reflexão e a vontade, que operam acima dos sentidos". O instinto mesmo de sobrevivência, por exemplo, seria negado quando os homens escolhem morrer. O homem vive porque quer. A necessidade de viver não lhe é imposta à força.

O animal está sempre preso às suas necessidades vitais, e sua existência "não é mais do que o sistema dessas necessidades elementares a que chamamos orgânicas ou biológicas e o sistema de atos que as satisfazem". Mas a vida humana é bem mais que isso. A biologia ocupa-se de uma classe de fenômenos: os orgânicos. Mas a vida humana é aquilo que fazemos e o que nos acontece; é "pensar ou sonhar e comover-se". Nossa vida é o que fazemos porque nos damos conta de que o fazemos. Para Gasset, "viver é um não contentar-se em ser, mas compreender e ver que se é um incessante descobrimento que fazemos de nós mesmos e do mundo que nos rodeia". O homem não é a sua circunstância, ele apenas está submerso nela e pode ocupar-se de coisas que não sejam atender diretamente os imperativos ou necessidades de sua circunstância.

Os atos dos homens, portanto, modificam ou reformam a circunstância ou natureza. Nela passa a existir o que não existia antes. São esses os atos técnicos, e o conjunto deles é a técnica, ou seja, a "reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades". A técnica é, pois, a "reação enérgica contra a natureza ou circunstância". A vida é imprevista, e antes de nascer, nada nos é perguntado sobre ela. Em que circunstâncias vamos viver não é sabido, e encontramo-nos tendo que nadar numa circunstância, inexoravelmente indeterminada. "Viver é como uma situação que tenha de ser enfrentada, num mundo indeterminado". É um problema que temos que resolver, e cuja solução não se pode transferir a nenhum outro ser. A técnica é o contrário da adaptação do sujeito ao meio; é a adaptação do meio ao sujeito.

O homem não busca apenas atender às necessidades básicas da sobrevivência. O conceito de "necessidade humana" engloba, desde o homem primitivo, tanto o objetivamente necessário quanto o supérfluo. Como diz Gasset, "o empenho do homem em viver, em estar no mundo, é inseparável de seu empenho em estar bem". O bem-estar, e não o estar é a necessidade fundamental do homem. Como conclusão desse raciocínio, o homem é um animal para o qual só o supérfluo é necessário. A técnica, nesse sentido, é a produção do supérfluo. O animal, diferente do homem, contenta-se em viver com o mínimo necessário para o simples existir. Já o homem quer muito mais que isso. Seu bem-estar é sua meta, e se trata de um ponto de chegada sempre móvel, ilimitadamente variável.

A questão importante é que a técnica não é por si só, boa ou ruim. Ela diminui, às vezes quase elimina o esforço imposto ao homem pela circunstância, mas se o homem fica isento de tarefas impostas pela natureza, surge a pergunta de o que ele vai fazer, com que vai ocupar sua vida. A superação da vida animal libera o homem para se dedicar a vários afazeres não biológicos, que não são impostos pela natureza. O homem mesmo inventa tais afazeres. Se o homem não cuida muito de aproveitar suas horas da melhor forma possível, sua vida será a estrangulação constante de si mesmo. Como diz o escritor, "o mais trágico do homem é o mais glorioso, pois ele tem obrigação de escolher e, portanto, queira ou não, tem que levar a efeito sua liberdade". O mundo ao redor do homem é uma intricada rede, tanto de facilidades como de dificuldades. A existência do homem não é um estar passivo. Ele tem de lutar constantemente contra as dificuldades que o entorno lhe oferece. Viktor Fankl resumiu bem o livre-arbítrio do homem cercado pelos limites do meio: "Entre o estímulo e a resposta, o homem tem a liberdade de escolha".

Gasset afirma: "Precisamente porque o ser do homem não lhe é dado, mas é em princípio pura possibilidade imaginária, a espécie humana é de uma instabilidade e variabilidade não comparáveis às espécies animais". E conclui que, em suma, "os homens são enormemente desiguais, contrariamente ao que afirmavam os igualitaristas". Cada homem tem que fazer sua própria vida, já que esta não lhe é algo dado e pronto. "Viver é descobrir os meios para realizar o programa que se é", explica Gasset. Logo, o sentido e a causa da técnica estão fora dela, "no emprego que o homem dá às energias que lhe sobram, energias economizadas pela técnica". A missão inicial da técnica seria esta então: dar liberdade ao homem para ele poder entregar-se a si mesmo. As preferências são subjetivas e cada um terá que escolher o que quer para si.

Comparando Esparta com Atenas, vemos que a primeira se concentrava mais no essencial, sendo austera e igualitária, enquanto a última cultivava a beleza do espírito e das formas. Roberto Campos resume que Esparta seria a civilização do necessário, enquanto Atenas a do supérfluo. O esforço militar disciplinado dos espartanos não deixou vestígios agradáveis e marcou bem menos o ocidente que sua rival mais frívola. De fato, há uma tendência, possível através da técnica, em tornar fim o que antes era um simples meio. Se antes comer era quase um ato somente para a sobrevivência, hoje temos a arte da culinária. Se beber era para matar a sede, hoje temos vários enólogos discursando sobre os prazeres de um bom vinho. Se as roupas visavam à proteção do clima, hoje temos o mundo da moda.

O homem sempre buscou mais que atender as mínimas necessidades da vida. A técnica consciente é seu grande aliado nessa trajetória. "Contudo", lembra Gasset, "a vida humana não é só luta com a matéria, mas também luta do homem com sua alma". Ter isso em mente é fundamental quando vemos o grande vazio que muitos homens sentem mesmo num mundo de técnica extremamente avançada. A redução do desconforto material, possível pelo progresso da técnica, é espetacular e algo desejável. Mas não é tudo na vida humana.

9 comentários:

Anônimo disse...

A técnica é dominação da natureza, dominação do objeto, será que a técnica também não nos dominou? Nós não somos escravos da técnica? Rodrigo Constantino?

Rodrigo Constantino disse...

Por que seria? Dê exemplos...

Anônimo disse...

Talvez o conceito de técnica seja ideológico. Não é só sua utilização, é a técnica mesma que é dominação,sobre a natureza e sobre os homens. Nós somos reféns da técnica, um exemplo fútil, porém plausível, é o celular, quanto mais técnica melhor. A compra de celulares novos e com novas técnicas(tecnologias) não é apenas por manipulação publicitária, ou outro motivo qualquer, pode representar justamente a nossa escravidão a técnica no mundo atual.

Anônimo disse...

Essa escravidão se apresenta como subserviência ao aparelho técnico, dando mais comodidade à vida ou aumentando a produtividade do trabalho.

Morgana disse...

Tudo o texto é isto:
"Pelo necessário, o homem é capaz de matar; pelo supérfluo, é capaz de morrer." (Carlos Lacerda)

A mais pura verdade.A necessidade é do instinto,do primata que nos habita.Mas o supérfluo é cria do raciocínio,da mente elaborada,é a marca do "homo sapiens".

O supérfluo é a próxima necessidade,satisfeita esta.E,nunca terá fim,é o dínamo do nosso pensamento e da nossa evolução.

Belo texto,gostei muito.
Um abraço,
Wanly.

Unknown disse...

Não obstante, a comida e o sexo são as coisas mais prazerosas da vida. A mesma coisa para os animais.

Blogildo disse...

Texto claro e objetivo.

O final me intrigou: "a vida humana não é só luta com a matéria, mas também luta do homem com sua alma".
Para Gasset, o que seria a "alma" do homem com a qual ele tem de lutar?

Catellius disse...

Caro Constantino,

Como sempre, ótimo artigo.
Concordo com o essencial mas, como bom "ateniense", atenho-me aos supérfluos de seu texto, sobre os quais quero tecer alguns irrelevantes comentários:

"O esforço militar disciplinado dos espartanos não deixou vestígios agradáveis e marcou bem menos o ocidente que sua rival mais frívola."

Em primeiro lugar, deveríamos nos perguntar como seria o mundo hoje se os espartanos não tivessem, com a ajuda de atenienses e outros gregos, contido o avanço persa. A democracia era recém-nascida, bem como a filosofia e o livre (nem sempre, vide a morte de Sócrates) pensar.

Embora os próprios espartanos tenham dito que seus principais monumentos eram feitos de carne - em outras palavras, que seus cidadãos eram seus maiores monumentos -, é falso que os espartanos não produziam arte e outros "supérfluos". Pausiano, viajando através da Lacônia por volta do segundo século de nossa era, descreve centenas de construções significativas, belíssimos templos, tumbas e edifícios públicos. Dois dos mais significativos templos eram o Menelaion e o Amiklaion. O primeiro, erigido aproximadamente 700 a.c., era um templo dedicado a Menelau e à Helena (da Ilíada), o segundo era considerado o principal templo de toda Lacedemônia, em cujo altar figurava uma descomunal estátua de Apolo em bronze.

De acordo com fontes contemporâneas (ao auge de Esparta), a cidade era particularmente conhecida pela música e pela dança. Querem algo mais efêmero do que a dança? Como gostaríamos que ela ficasse registrada para a posteridade? Por meio de fitas de vídeo ou por complexas notações? O mesmo pode ser dito da música. Imaginamos como ela poderia ter sido estudando os instrumentos e seus timbres, apenas. É sabido que as pessoas viajavam grandes distâncias apenas para assistir aos concursos espartanos de canto coral e dança, particularmente a Gimnopédia (lembram-se das peças homônimas do pueril Satie, do séc. XX?) e a Hiakinthia. E há relatos (Heródoto e inúmeros outros) de que os espartanos eram os melhores em música marcial - o que é de se esperar -, com coros, tambores e metais. Será que houve algum Wagner lacônico?
Escultores espartanos eram conhecidos e ajudaram na ornamentação de templos em Delfos e Olímpia.
E poetas espartanos eram admirados no mundo antigo, e (não me recordo do nome) o primeiro poema de amor de que se tem notícia vem de lá.

E eles não eram tão superiores militarmente aos atenienses, tanto que a Guerra do Peloponeso durou décadas e Esparta só venceu por meio de artimanhas. E impôs à Hélade uma tirania que faria corar os autores do filme "300" e seus intérpretes de hoplitas libertários de barriga de tanquinho. A guerra enfraqueceu tanto os gregos que os macedônicos dominaram toda a Grécia e sufocaram as revoltas de coríntios, argivos, lacônicos e outros. Uma boa coisa que adveio da reação à crescente influência de Atenas que motivou os ataques por parte de Esparta foi a ascensão de Alexandre Magno.

Ele, que passou a ser uma espécie de santo, tanto que o próprio César invejava o fato de todo templo a Hércules contar também com uma estátua do macedônico, respeitou as tradições, a religião e a administração dos povos conquistados. Admitiu jovens persas no seu exército, promoveu o casamento de milhares de seus soldados com mulheres orientais e incentivou ao máximo a troca de informações e a miscigenação entre os diferentes povos do seu império, chegando até a levar milhares de insetos, plantas e animais exóticos para que seu antigo tutor, Aristóteles, os analisasse. Com isso, acabou estimulando os gregos a conheceram a cultura oriental e a difundir sua própria língua para outros povos, inclusive para os neandertais que ainda grunhiam lá na Palestina.

" 'Contudo', lembra Gasset, 'a vida humana não é só luta com a matéria, mas também luta do homem com sua alma'. Ter isso em mente é fundamental quando vemos o grande vazio que muitos homens sentem mesmo num mundo de técnica extremamente avançada."

Para bom entendedor, é lógico que "alma", no sentido do texto, não é o fantasminha inútil que é inoculado nos zigotos por um deus vulcânico de povos do deserto mas o componente incorpóreo do ser humano, nomeadamente seu pensamento, seus princípios, suas faculdades intelectuais e morais, sua própria pessoa, sua existência, seu motor, seu colorido, entusiasmo, paixão, animação, caráter, índole, etc.

Abraços,
Catellius

Anônimo disse...

O outro tolo aí de cima sempre querendo publicidade em cima do Constantino, tst tst.

Muito interessante o texto